Saturday, 6 December 2008

A Rua é de Todos-Capítulo 7

Oito horas da manhã. Estava no Estreito, bairro de Florianópolis, me dirigia ao trabalho quando fui abordado por um sujeito. Não possuía boa aparência, mas parecia saber usar bem as palavras que pronunciava. O homem me mostrava o que teria sido a sua coberta após uma noite fria, um pedaço de pano vermelho com alguns retalhos laranja, feito por um grupo de caridade da Igreja Assembléia de Deus. Sem documentos que comprovassem a filiação, dizia-se filho de Valter Cavilha Januário e Beatriz Januário. Era fácil entender as palavras de Leopoldo, que mesmo após ter bebido quase uma garrafa inteira de cachaça até àquela hora da manhã, parecia ter estudado com cuidado cada frase que pronunciava.

Notava-se que seu corpo já estava acostumado aos efeitos provocados pelo álcool. Esquecia do meu trabalho, e fiquei interessado nas histórias que Leopoldo, nem percebia o tempo passar. Tentando fazer com que eu prestasse mais a atenção ainda em suas histórias, ele quebra o silêncio falando: Fui mercante em Santos, padeiro, marinheiro, conheci dez estados brasileiros, já fui de embarcação pro litoral da África, conheci o mar vermelho e, por último fui ao Paquistão – e logo emenda uma pergunta. “Você entende o que estou te falando?”

– Sim! - Respondo. “Posso te contar muito mais coisas”, afirma. ”Mas o que você tem a me oferecer?”. Questiona diretamente como se já estivesse habituado a fornecer entrevistas. Satisfaço seu desejo com uma carteira de cigarros baratos e continuo a ouvir suas longas histórias. Ele já se encontra fora do perfil de idade dos moradores de rua de Florianópolis, que vai dos 32 aos 50 anos. Com 60 anos de idade, 30 deles nas ruas, parecia faltar tempo para viver tantas coisas que ele me contara. Uma parte de sua família era de São Paulo e outra do Rio de Janeiro.

Há anos não encontrava se quer um de seus familiares. Chegou a Florianópolis a bordo de um navio de onde foi demitido pelo vício do álcool. Um dos seus maiores sonhos é reencontrar seus quatro filhos, segundo ele cada um de mãe diferente. Sonho que a cada dia perturba os ouvidos de Amauri Cardoso, um dos seus amigos de rua.
Natural de Blumenau, Amauri vive nas ruas há nove anos. Não quis mais saber da família após ter sido internado por eles numa clínica de tratamento psiquiátrico.

A história de Amauri parece com uma das tantas que se repetem pela boca dos moradores de rua. Aos 20 anos de idade dirigia caminhões pelos estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Conseguiu a habilitação categoria D/E, que permite dirigir caminhões com grandes cargas. A vida dele era essa, viajar. Amauri teve um filho o qual ele lamenta não ter participado ativamente da criação pelo excesso de trabalho.

Os problemas conjugais também atormentaram a sua vida. Sua mulher o rejeitava pelo fato de ficar muito tempo longe e manter relações com outras mulheres durante os percursos que fazia em suas viagens. Com o dinheiro dos anos que trabalhou como caminhoneiro, construiu uma casa em Itajaí onde morou com sua ex-mulher e o filho caçula. Seu filho mais velho foi preso por se envolver com o tráfico de drogas e cumpre pena no presídio de São Pedro de Alcântara. A vida que ele leva nas ruas tem algumas semelhanças com o que vivia na época que era “direito”. A principal delas o vício freqüente do álcool.

Amauri ficava uma, duas semanas na estrada sem voltar para casa, o telefone não era tão acessível como hoje, e o contato com a família se tornava difícil. A desconfiança da lealdade de sua mulher o deixava irritado, mas não se importava em ter relações com outras por aí. “Eu gostava é mesmo da patroa, as otra era só pá alivia”. Sempre que chegava em casa a briga entre o casal era freqüente, e as desconfianças aumentavam. Os filhos já não o obedeciam, devido a sua ausência. O alcoolismo estava acabando com a vida de Amauri. Quando chegava de viagem à primeira coisa que procurava era o “Bar do Jóia”, um boteco que ficava na esquina de sua rua. O Jóia marcava as bebidas e Amauri acertava a conta sempre que voltava, mas ligeiramente dava jeito de engordá-la novamente.

Para ser mais presente no lar, Amauri resolveu trabalhar em Itajaí. Começou uma carreira de guarda de trânsito, a qual não durou muito, foi instrutor de uma auto-escola, já que dirigir sempre foi o que melhor sabia fazer. Mas o alcoolismo ainda destruía tudo o que ele havia construído. Não demorou muito foi demitido e começou a trabalhar como encanador hidráulico, profissão na qual seu filho mais velho o ajudou durante algum tempo. Aos 48 anos de idade lembra os dias que tinha seu carro próprio. Adorava dirigir, pegar uma estrada, mas as dívidas começaram a surgir, e a profissão de encanador já não rendia suficiente para sustentar o vicio e pagar as contas da casa. Amauri vendeu seu Scort 1993, amarelo modelo conversível para se estabilizar, mas as surpresas seriam ainda maiores na sua vida.

Com sérios distúrbios provocados pelo álcool foi internado aos 39 anos na Colônia Santana, atual Centro de Recuperação São José. Lá ficou aproximadamente um ano, até que resolveu fugir e morar nas ruas.“Eu nunca fui louco, tive meus problemas, mas já tô recuperado, não quero mais saber deles, isso não se faz nem com cachorro”.
Leopoldo e Amauri têm fases semelhantes em suas vidas, ambos admitem que o álcool foi o fator que mais contribuiu para que chegassem no estado em que se encontram.

A conversa é interrompida pelo silêncio. Para quebrar o gelo do momento, Amauri me oferece um gole de pinga numa garrafa de plástico suja de poeira, enrolada numa sacola de supermercado, que ele carrega amarrada na cintura.“Cê acha que o homi vai querer isso?” – retruca Leopoldo. Ele me pede ajuda para que possa sair daquela situação. Leopoldo quer ser internado, e vê em mim uma luz para conseguir alguém que o mande para um centro de recuperação. Diz que sou um anjo que Deus mandou até ali. Termino a conversa, viro as costas e vou saindo devagar, mas gravo em minha mente a última frase dita por ele.

“Preciso ser internado, quero sair dessa vida, será que existe alguém que pode me ajudar?”.

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